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A espiritualidade como ferramenta no tratamento do transtorno depressivo


Cada vez mais a espiritualidade é relacionada à saúde (Foto: Henrique Oliveira)

Por Henrique Oliveira

“Um sol que envolve tudo o que se vê e que gera imensas sombras na sua vida” é dessa forma que Tiago Ribeiro, 22, estudante cinema na PUC-Rio, define a depressão. O universitário suspeitava das alterações de seu estado de espírito desde os 13 anos, mas só iniciou o tratamento há quatro. O jovem afirma que integrou os transtornos depressivos como parte integrante de sua vida. “Eu acho que por ter vivido tantos anos com isso, eu diria que o fato de estar convivendo com isso meio que moldou como eu sou hoje em dia.”

Desde que iniciou a graduação em Cinema, o estudante passou a morar sozinho no Rio de Janeiro onde tem contato com um irmão que também mora no estado. Ele interpreta a onda de pensamentos decorrentes em sua mente como um “furacão”. Num dos relatos, o jovem destaca que ás vezes esse turbilhão de sentimentos o forçavam a se afastar e se isolar de amigos e familiares. Em seu relato, uma palavra se identificava com clareza: medo. Um medo, segundo ele mesmo, injustificável, mas que o impedia de realizar as coisas. Seu maior desejo é aproveitar bem um dia sem que esses pensamentos negativos o impeçam. E ele luta por isso.

Dados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013.


O universitário representa um dos 11,5 milhões de brasileiros que sofrem com transtornos depressivos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença atinge 15% da população entre 15 e 29 anos. Dentre as recomendações médicas para o tratamento da doença destacam-se o atendimento psicológico, a consulta a psiquiatras, e, em casos mais sérios, o uso de medicamentos. No entanto, outra forma de tratamento tem se sido cada vez mais eficaz para trabalhar em conjunto com as anteriores: a realização de práticas espirituais. Um ponto que vai de encontro a essa mudança é a alteração do conceito de saúde pela OMS, em 1998, que a redefiniu como um “estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade.”

De acordo com um artigo publicado no periódico Journal of Affective Disorders, a espiritualidade  tende a ser mais protetora entre as pessoas com sintomas psiquiátricos. O estudo realizou uma revisão sistemática com base no resultado de outras pesquisas relacionadas ao mesmo tema. O resultado chamou a atenção: até 2010, dos 70 estudos prospectivos realizados sobre o assunto, 56% relataram ao menos uma associação significativa entre uma medida da relação da espiritualidade com níveis mais baixos de depressão no acompanhamento, 10% relatam uma associação significativa com níveis mais altos de depressão no acompanhamento e 24% não tinham essa associação. Em linhas gerais, no total, em 49% dos estudos analisados, o equivalente a 138 publicações, a religiosidade e a espiritualidade previu uma diminuição da depressão ao longo do tempo.

Em outro artigo publicado no acadêmico Annals of Familly Medicine, 83% dos entrevistados relataram o desejo de que os médicos perguntassem sobre crenças espirituais aos pacientes. Nesse grupo, entre os cenários mais aceitáveis para essa discussão destacam-se: o caso das doenças com risco de vida (94%); condições médicas graves (91%) e perda de entes queridos (87%). Dentre os momentos nos quais esse debate não é bem vindo pelo paciente estão em penúltimo lugar os exames de rotina (24%) e, em último lugar, durante uma consulta para tratar um pequeno problema médico (22%). De todos os entrevistados, 68% gostariam que o profissional de saúde utilizasse as informações sobre a espiritualidade para que possam compreender a forma com a qual suas crenças influenciam na forma de lidar com a doença.



A PERDA DE BRILHO NO OLHAR

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Dra Marly Chagas comenta sobre o transtorno depressivo. (Foto: Henrique Oliveira)

Doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2001, uma das autoras do livro Musicoterapia e promoção da saúde: Caminhos possíveis (2017) e presidente da Associação de Musicoterapia do Rio de Janeiro, Marly Chagas define a depressão como uma doença complexa e multifatorial, visto que diversos elementos podem acarretar na ocorrência desse transtorno, dentre os quais se destacam fatores hormonais, genéticos, pessoais e culturais. Para a profissional, um dos sinais mais claros que ajudam a identificar quem pode estar sofrendo com a doença é a perda de brilho no olhar. “É a falta de vontade de fazer as coisas, a falta de vitalidade para enfrentar muitas coisas, e, quando ela vai ficando mais grave, não tem vontade de sair da cama, vontade de tomar banho, vontade de conversar... O isolamento, o ensimesmamento, a falta de brilho no olho, a vontade de não se comunicar, de não estar no grupo, são sinais importantes da depressão.”, destaca.



A doutora critica a sociedade das aparências que norteia o mundo de hoje, a qual nega as suas fraquezas e impõe que tudo precisa ser perfeito. Para a profisisonal, essa foi a responsável pela onda de transtornos depressivos. “Nós vivemos numa sociedade que não consegue enfrentar a tristeza. Todo mundo é UP! Todo mundo é lindo! Todo mundo tem que estar na festa! Então você estar deprimido no Rio de Janeiro, no verão... é muito triste porque parece que você tem que estar em tudo quanto é festa, em todas as ondas... Mas não é bem assim.”, afirma.

Nós vivemos numa sociedade que não consegue enfrentar a tristeza.
A psicóloga entende a importância da espiritualidade na relação do profissional de saúde como forma de proporcionar bem-estar ao paciente. Ela acredita que hoje isso é tão importante quanto trabalhar na cura. “A espiritualidade entra como uma esperança, como uma forma de aumentar a fronteira, como uma sensibilidade a um amor que não precisa ser um amor humano. Então, seja ela uma entidade do camdoblé,  um anjo da guarda, um companheiro espiritual, um Deus hindu, a espiritualidade chega para falar "você não está sozinho", encerra.


Dra. Marly Chagas conta a experiência mais marcante:




ESPIRITUALIDADE E O TRATAMENTO

Celso Carias analisa a relação da espiritualidade com a depressão (Foto: Henrique Oliveira)

Doutor em Teologia com ênfase em Teologia Fundamental e autor do livro Teologia para Todos: Manual de Iniciação Teológica com base nos seus principais temas, o professor Celso Pinto Carias afirma que a espiritualidade e a religiosidade podem colaborar para a saúde mental no momento em que elas proporcionam um sentido para a existência do indivíduo. “Ela [a espiritualidade] pode e deve acompanhar as pessoas, dar força, motivação, no tipo de fé que ela tem. No caso do Cristianismo, a presença de Deus na vida daquelas pessoas ou dessas pessoas pode ser sentida na relação com quem ela vive. Porque no caso da depressão, ou outras patologias psíquicas, a pessoa precisa desse apoio solidário de uns com os outros. E o cristianismo justamente prega isso. A presença de Deus não é uma presença individualista, subjetivista, é uma presença que se coloca em comunidade. Então, essa pessoa, sentindo essa força, pode encontrar apoio e condições de vencer a depressão.”, explica.
Não há doença provocada pelo espiritual.
O professor concorda em parte com as declarações da doutora. Seu maior ponto de divergência é com relação ao tema de que a depressão tenha uma dimensão espiritual, ele discorda disso. “Na minha concepção cristã não há doença provocada pelo espiritual. Não há uma perspectiva de algo que venha de fora, de ter dor e sofrimento nessa dimensão subjetiva. Tem em várias outras possibilidades... Mas, por exemplo, para mim e tantos outros que acreditam nessa mesma linha de interpretação do cristianismo, não há demônio que vai trazer doença. O mal ele não vem de uma forma tão individual.”, afirma.



O teólogo acredita na importância do profissional formado em medicina em aprender a lidar com pessoas que vivenciam as experiências religiosas as quais podem ser determinantes num processo de cura. O professor destaca que a espiritualidade pode contribuir tanto no tratamento quanto no cuidado paliativo e alerta que o médico não deve banalizar essa relação do paciente com o transcendental. “Qualquer que fosse a área da medicina, se a pessoa acredita em determinadas ações, digamos, que se relacione com o transcendente o médico não deveria banalizar. Ele tem o seu papel cientifico de cuidar do paciente. Agora, esse paciente é uma pessoa que tem os seus próprios dramas as suas próprias perspectivas de vida onde nem sempre necessariamente a ação da ciência direta, mesmo com a química, vai garantir o resultado se a pessoa também não contribuir para isso. Então, a pessoa estando bem psiquicamente, e é nesse sentido, que a espiritualidade pode ajudar.”, completa.



ESPIRITUALIDADE COMO ESPERANÇA

(Foto: Arquivo pessoal)

Estudante de jornalismo pela PUC-Rio e de Estatística pela UERJ, Luciana Peres, 24, convive com um transtorno ainda mais complexo. Quando cursava o terceiro ano do Ensino Médio, ficou durante três meses sem conseguir ir às aulas. Ao se encontrar com o coordenador pedagógico para uma reunião de rotina, foi perguntada se estava tudo bem e não conseguiu responder. O silêncio e o choro constante foram sinais de alerta ao profissional que acionou os pais e sugeriu que procurassem apoio psicológico para a jovem. Pouco tempo depois, viria o diagnóstico da depressão. Preocupados, seus pais mudaram algumas regras da casa. “Eu não podia ficar mais afastada, a porta do quarto sempre deveria ficar aberta, essas coisas.”, relata.
Me blindei de todas as formas possíveis.
O tratamento foi um pouco tardio. A dificuldade de se adaptar em um psicólogo foi determinante para esse atraso. Em 2017, ao iniciar a consulta com um psiquiatra teve o diagnóstico alterado: era boderline. A doença tem como alguns sinais a presença do transtorno depressivo, da crise da ansiedade e da crise de pânico. A jovem tenta interpretar o seu conflito interior: “Por várias vezes eu sumo. Não atendo meus amigos, não quero ver meus amigos e aí eu fico triste porque eles não estão me chamando para sair com eles. E aí eu acabo me isolando cada vez mais com medo deles me afastarem. E isso é uma fuga da realidade. É eu não querer ver o exterior e eu só querer ficar no meu quarto, dormir e viver nesse meu mundinho. Não por se sentir vazio, mas sim, porque eu não quero que o mundo exterior me machuque.”, revela.




Para a jovem, a espiritualidade trabalhada em conjunto com o tratamento psicológico e psiquiátrico foi fundamental para sua melhora. Para ela a relação da espiritualidade com o tratamento é essencial como um fator de cura. “Na minha religião a gente fala que Deus não dá uma cruz mais pesada que a gente não possa carregar. Então, eu o tempo inteiro, lembro que sou forte, que esta tudo bem, que vai passar... e o que não passar vai ter alguém que vai me dar um sustento. Então é nisso que a religião tem me ajudado muito.”, conta.

Atualmente, a jovem nota uma melhora significativa em seu quadro clínico. Ela destaca que antes de iniciar o tratamento, havia sido convidada para dar uma palestra num retiro espiritual da igreja para cerca de quinze pessoas, mas não conseguiu cumprir o compromisso por conta dos surtos. Hoje, consegue realizar palestras para cerca de cem pessoas, sem problemas, e já ensaia uma peça para o próximo retiro. Sobre o tratamento e a espiritualidade ela afirma: “Me blindei de todas as formas possíveis. Me blindei pelos remédios, me blindei através da psicoterapia e me blindei através da religião também pra tentar controlar os meus surtos.”

Comentários

  1. Matéria de grande auxilio para comunidade. Apresentou vários pontos de vista , de fácil Compreensão.

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